Em seu instigante artigo “Educação Após Auschwitz”, Adorno (1903-1969) – um dos mais importantes pensadores da “Era dos Extremos” (apelido dado ao século XX d.C. por Hobsbawm) – argumentou: “qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação.” [1]
Escrito à sombra da Shoah, ou seja, assombrado pelo extermínio em massa de judeus europeus promovido pelo nazi-fascismo entre 1933-1945, o texto prossegue tendo ressonância mais de meio século após a morte de Adorno. No entanto, ressoa de maneiras que seu autor talvez não suspeitava: hoje, é diante da Catástrofe na Palestina que a humanidade olha para o abismo assustador da re-ocorrência de um horror similar àquele que se manifestou nos lager implantados pelo III Reich.
Só que desta vez, o campo de concentração chama-se Gaza e não Auschwitz; e os perpetradores do genocídio não são alemães em delírio racista, querendo construir a sociedade de supremacia ariana, mas sim judeus sionistas, muitos deles descendentes de vítimas ou sobreviventes do holocausto, e que mostram-se firmemente convictos de seu direito divino a promover a limpeza étnica contra a população palestina, tratada como subhumana, em prol da consolidação da etnocracia imperial chamada Israel.
Abundam evidências de que o chamado adorniano sobre a educação após Auschwitz não foi devidamente ouvido nem praticado por quase ninguém, muito menos por aqueles que colocam como meta a consolidação do “Estado Judeu” (originalmente formulado por Herzl e hoje encabeçado pelo partido Likud e por lideranças como Netanyahu). Hoje somos impelidos a atualizar a fórmula Adorniana e propor também como meta educacional, a um só tempo crucial e inadiável, o “pensar após Gaza” – expressão que entitulou a contundente palestra proferida por Vladimir Safatle em sua aula inaugural na FFLCH-USP em 2024 (disponível na TV Boitempo no YouTube e cuja transcrição foi publicada por A Terra É Redonda).
Uma das virtudes da intervenção safatliana está na defesa de uma concepção da atividade filosófica, inspirada por Badiou e Canguilhem, que consiste em colocar-se diante dos acontecimentos do mundo contemporâneo, deixando-se afetar por eles e tendo o pensamento instigado pelo intenso aqui-e-agora. Ao invés de nos rendermos a uma filosofia anêmica, devotada apenas aos livros e às obras de homens mortos europeus que viveram muito antes de nós termos nascido, Safatle convoca-nos a comparecer diante de Gaza e sublinha o conceito de catástrofe, oriundo do grego katastrophē, produzindo também importante reflexão etimológica:
“É possível que uma época seja marcada por acontecimentos que não são portadores potenciais de novas formas de relação, mas que são a expressão da dimensão do intolerável. A esses normalmente damos o nome de ‘catástrofe’. E quem gostaria de pensar a partir de acontecimentos deve ser capaz também de fazer o pensamento parar diante de catástrofes. Parar não como quem se coloca diante do cultivo do incomunicável e da paralisia, mas como quem entende que se trata de enunciar o signo final de uma época que não pode mais de forma alguma permanecer. O termo, vindo do grego, não deixa de ter uma etimologia significativa: kata significa “para baixo”, e strophein denota “virar”, inicialmente usado na tragédia para indicar o momento no qual os acontecimentos se voltam contra o personagem principal. Ou seja, o momento em que a história se vê obrigada a mudar brutalmente de direção. Falo isso porque nosso presente se vê diante de uma catástrofe dessa natureza e, a meu ver, seria obsceno usar essa aula magna para falar de outra coisa, como se essa catástrofe não estivesse entre nós, a corroer nossos dias, a gritar diante de nosso sono dogmático. Se eu falasse de outra coisa, eu estaria dizendo a vocês que a filosofia pode ignorar a dor, pode ser indiferente ao despedaçamento dos corpos e ao genocídio de populações, o que seria a meu ver uma péssima forma de começar um curso de filosofia. Eu estaria ensinando a indiferença e dando a impressão de podermos continuar a fazer nosso trabalho como se nada estivesse a ocorrer. Decididamente, não é silenciando a dor que se começa a pensar filosoficamente, mas é a escutando, é fazendo o pensamento passar através dela. A catástrofe da qual estou falando está associada a um lugar. Ele se chama Gaza.” (SAFATLE: 2024) [2]
A filosofia seria obscena e reprovável se quisesse atuar com base na ignorância voluntária e na indiferença afetiva diante dos acontecimentos catastróficos que, ainda que ocorram em um território geográfico distante do corpo do filósofo(a), são e estão presentes. As atrocidades do exército sionista de ocupação na Palestina estão disponíveis a nosso saber e testemunho, através da rede mundial de computadores, naquilo que é problematicamente chamado de “Genocídio Televisionado” (empresto a expressão de Breno Altman), e nesta conjuntura o silêncio nada tem de neutro ou inocente, sendo obviamente a expressão de uma silente cumplicidade ou assentimento com os assassinos.
A Catástrofe em curso, porém, já se realiza num contexto pós-TV, de hegemonia das redes sociais, e a carnificina em nossos feeds não nos chega sem filtros nem desprovida de censura e shadowbanning. Considero ilusória a noção de que o genocídio perpetrado contra os palestinos seja algo sobre o qual há pleno conhecimento por parte da maioria dos cidadãos globais: Meta, Google e Microsoft estão agindo em prol do ocultamento parcial da carnificina, e os feeds de notícias personalizados a partir de algoritmos e aprendizado de máquinas tornam equivocada qualquer noção que trate o feed como entidade homogênea, quando na verdade cada usuário tem um feed diferente do outro. De maneira que a visibilização dos horrores de Gaza não deve ser super-estimada: há poderes colossais tentando ocultar esta Catástrofe.
Para além das corporações transnacionais sediadas no Vale do Silício, que praticam este vergonhoso ocultamento como política empresarial, trabalha também em prol do ocultamento toda pessoa que toma a decisão voluntária de ignorar o que ocorre, e que de maneira voluntária escolhe não buscar informação, não acessar fotos e vídeos provenientes de Gaza, muitas vezes com o argumento de conteúdos assim geram desassosego, angústia, insônia ou mesmo descrença acerca do futuro da aventura humana na Terra. Esta atitude, descrita por tantos sujeitos com um argumento de natureza “psicológica”, não servirá excelentemente aos senhores da guerra? Estes não contam conosco para fecharmos nossos próprios olhos?
Quero explorar neste texto a calamidade ética e política vinculada à catástrofe em curso na Palestina também pelo viés daqueles que preferem não se manifestar, que nunca fizeram um post em mídia social sobre o tema, que não ventilam nenhuma indignação ou revolta com as ocorrências, e que parecem apáticos e indiferentes mesmo quando informações provenientes de várias fontes confiáveis indicam a escala gigantesca dos crimes contra a humanidade cometidos pelo exército de Israel e seus cúmplices e financiadores ocidentais – os EUA, U.K., boa parte da E.U… em suma, a mesma OTAN hoje engajada no apoio à Ucrânia e que dá não só seu aval mas seu capital para o holocausto palestino que, segundo The Lancet, encaminha-se já para 200.000 vítimas fatais. A defesa da filosofia, da literatura, do pensamento crítico, como antídoto salutar contra a calamidade ética tão pervasiva, é o mais óbvio campo de atuação em que estas palavras pretendem se lançar.
É neste contexto que quero evocar aqui a conferência proferida por Arundathi Roy em Dezembro de 2023 e publicada pela Revista Hammer & Hope. A escritora e ensaísta indiana, que hoje enfrenta dura perseguição promovida contra ela pelo governo Hindu-nacionalista de extrema-direita comandado por Modi e seu partido BGP, realizou uma intervenção sobre a Catástrofe Palestina muito comovente, bem-informada, historicamente ancorada e profundamente sábia. Nela, Arundathi lamenta que a Índia perdeu seu “compasso moral” e mostra-se estarrecida com o silêncio de quase todos os intelectuais e artistas diante de um genocídio transmitido ao vivo em nossos feeds:
“Our country has lost its moral compass. The most heinous crimes, the most horrible declarations calling for genocide and ethnic cleansing, are greeted with applause and political reward. While wealth is concentrated in fewer and fewer hands, throwing crumbs to the poor manages to garner support to the very powers that are further impoverishing them. The most bewildering conundrum of our times is that all over the world people seem to be voting to disempower themselves. They do this based on the information they receive. What that information is and who controls it — that is the modern world’s poisoned chalice. Who controls the technology controls the world. But eventually I believe that people cannot and will not be controlled. I believe that a new generation will rise in revolt. There will be a revolution. Sorry, let me rephrase that. There will be revolutions. Plural.
I said we, as a country, have lost our moral compass. Across the world millions of people — Jewish, Muslim, Christian, Hindu, Communist, atheist, agnostic — are marching, calling for an immediate cease-fire in Gaza. But the streets of our country, which once was a true friend of colonized people, a true friend of Palestine, which once would have seen millions marching, too, are silent today. Most of our writers and public intellectuals, all but a few, are also silent. What a terrible shame. And what a sad display of a lack of foresight. As we watch the structures of our democracy being systematically dismantled and our land of incredible diversity being shoehorned into a spurious, narrow idea of one-size-fits-all nationalism, at least those who call themselves intellectuals should know that our country too could explode.
If we say nothing about Israel’s brazen slaughter of Palestinians, even as it is livestreamed into the most private recesses of our personal lives, we are complicit in it. Something in our moral selves will be altered forever. Are we going to simply stand by and watch while homes, hospitals, refugee camps, schools, universities, archives are bombed, 1.9 million people displaced, and dead children pulled out from under the rubble? The borders of Gaza are sealed. People have nowhere to go. They have no shelter, no food, no water. The United Nations says more than half the population is at risk of starving. And still they are being bombed relentlessly. Are we going to once again watch a whole people being dehumanized to the point where their annihilation does not matter?” [3]
Os três autores aqui evocados, citados, celebrados – Adorno, Safatle, Arundathi – representam figuras públicas e intelectuais orgânicos que agem como antídotos contra a catástrofe justamente por nos fazerem avançar na elucidação crítica dos fenômenos e acontecimentos, o que sempre necessita também uma perspectiva histórica. Em sua intervenção recente do debate público, é ao discurso Come September que Arundathi faz referência, no qual ela analisou o mundo que emergiu das ruínas do World Trade Center em 2001 relembrando vários crimes do imperialismo estadunidense antes e depois dos eventos do 11 de Setembro.
Naquela ocasião, ela fez uma excelente retrospectiva histórica sintética a respeito das atitudes anglo-saxãs e sionistas diante da Palestina durante os últimos 100 anos – e A Casa de Vidro publicou a tradução de trechos cruciais. Arundathi é uma das poucas vozes com suficiente audácia para apontar o óbvio para todos aqueles que estudaram história: a Catástrofe palestina se conecta com as atitudes do agonizante Império Britânico no século XX e do hoje decadente e caotizado Império estadunidense do séxulo XXI, e seria importante comparar estes dois “presentes” sinistros que a Grã-Bretanha legou-nos no pós 2ª Guerra Mundial, a Partição da Índia, com o surgimento sangrento do Paquistão, e o avanço do settler colonialism sionista na Palestina a partir da Declaração de Balfour.
Um exemplo grotesco e chocante da calamidade ética e política no país onde a liberdade é uma estátua foi o discurso do primeiro ministro israelense diante do Congresso do USA – ocasião que o cartunista Quinho soube sintetizar com perfeição em um momento histórico onde já estão comprovadas as mortes de mais de 16.000 crianças, assassinadas pelo exército de Israel desde Outubro de 2023. Cúmplice e financiador do holocausto palestino, governo Biden/Kamala Harris merece que se pergunte nas ruas: “quantas crianças vocês mataram hoje?” Este é o legado sinistro do mandato de “Genocide Joe”, apelido merecido e com o qual ele fica carimbado em recente música do rapper Lowkey.
As cenas do genocida Netanyahu – também um mitomaníaco, ou seja, mentiroso compulsivo, que segue disparando fake news contra Hamas e UNRWA, sendo ovacionado no Congresso dos Estados Unidos da Agressão, são daquelas que levam ao auge a sensação de repugnância diante da aliança Yankee-Sionista que vem produzindo a pior Catástrofe já imposta aos 2 milhões de seres humanos de Gaza – e pensar que ninguém ali dentro levantou-se pra tacar um ovo podre na testa daquele filho-da-puta.
Presenciamos nesta ocasião mais um dia bizonho na história da demenciada nação estadunidense, com o criminoso de guerra Netanyahu falando a um Congresso que lhe lambia as botas sujas de sangue e vísceras de civis, enquanto as ruas ardiam de indignação ao redor em Washington DC… Em breve, os democratas (boa parte deles sionistas) enfrentam o republicano extremista-de-direita Trump, também ele um empedernido sionista, e ele mesmo culpado de um Genocídio pandêmico que custou as vidas de mais de 1 milhão de cidadãos estadunidenses. Situação insana, hein Tio Sam?
Sobre o tema, Noura Erakat, no Democracy Now, e Abby Martin, do Empire Files, souberam encontrar as palavras mais adequadas para reagir:
A obscena celebração do carniceiro Netanyahu pelo Congresso estadunidense ocorreu na iminência das Olimpíadas de Paris, na qual a Rússia sofre com duras sanções e estará fora do quadro de medalhas, mas Israel vai disputar a competição enquanto pratica um genocídio que expressa o estado de calamidade ética e política em que o mundo parece atolado. Educar após Auschwitz, pensar após Gaza, prosseguem inadiáveis metas educacionais para todos nós que nos recusamos a nos resignar aos horrores vigentes. A Nakba infindável precisa chegar ao fim e o apartheid imposto por Israel precisa ser desmantelado – antes tarde do que nunca, que possa nascer um Estado palestino soberano e que este povo, brutalmente oprimido há 75 anos, enfim goze de auto-determinação.
Os melhores antídotos contra a calamidade ética que consiste em banalizar a morte em massa de pessoas na Palestina já foram muito bem delineadas por outras figuras, além das três aqui convocadas, e que insisto em considerar como mestres e luminares: os caminhos para este outro mundo possível já foram iluminados por um Desmond Tutu, quando disse que “se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, por um Martin Luther King, proponente da ideia de que “injustice anywhere is a threat to justice everywhere”, por um Nelson Mandela, quando apontou que “nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos”, ou por um Ernesto ‘Che’ Guevara com sua consigna de empatia por todos os injustiçados da terra: “se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros.”
Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro, 27/07/2024
NOTAS
[1] ADORNO, Theodor. “Educação Após Auschwitz”. In: Educação e Emancipação, Ed. Paz e Terra. Saiba mais.
[2] SAFATLE, Vladimir. “Pensar após Gaza: desumanização, trauma e a filosofia como freio de emergência.” In: A Terra é Redonda. URL: https://aterraeredonda.com.br/pensar-apos-gaza/
[3] ROY, Arundhati. “Stop this Slaughter in Palestine”. In: Hammer & Hope, 2024. https://hammerandhope.org/article/arundhati-roy-palestine-gaza
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— A Casa de Vidro (@acasadevidro) July 27, 2024
Publicado em: 27/07/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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